Actos

Acto Primeiro

Estou só. Rasgos de luz entram neste santuário em ruínas. Curioso, chamar-lhe assim, por este nome tão ingrato e não haver mais que madeira podre e pedra bicada pelo tempo, corroída, moribunda… Tal como a minha pessoa… Ou eu, como for preferível. Não falo por ninguém, para ninguém, apenas para a esperança… Pensando bem, talvez fale para alguém… Imploro constantemente à minha Deusa que me leve daqui, que me deixe de apoquentar a alma com estes pedidos insólitos que me fazem continuar a vaguear por aí, na esperança de a encontrar… A esta Deusa mítica que para mim é, esta Deusa que me faz ter todas estas alucinações, todos estes conceitos de Vida e Desespero, apenas quero sair, apenas quero realizar a libertação desta alma ingrata que no meu corpo habita para o exterior, para o descanso eterno…
Poderei ser louco por tais coisas me passarem pela cabeça, mas eu gosto da minha Loucura, como eu a amo! Loucura, uma palavra tão inocente aos olhos dos sãos, mas tão clara para mim, tão desejosa de mim, tão… Suspiro mais umas golfadas de ar, esperando serem as últimas… Abro os meus olhos quase cegos e vejo um enorme buraco no chão, mesmo à minha frente, e quero atirar-me para ele, na esperança de que seja o buraco que me irá ceifar a vida, e atiro-me, tão louco que sou, moribundo, desejoso para que a grandiosa Morte me leve juntamente com a sua Ceifa, quando tiver arrancado aquela pobre alma que ainda reside no meu corpo desta Vida estúpida e ignorante!
Se ao menos a minha Deusa me desse ouvidos… Mas não, continua a ignorar-me, continua a desprezar-me, não só a mim, mas também aos meus tão desejosos quereres que me acompanham na minha inútil vida… Porquê, porque é tão difícil satisfazer as necessidades de uma pobre alma como a minha?
A queda no abismo da minha cabeça, não resultou bem no que eu esperava. Era só um buraco no soalho podre (coberto de flores, que inutilidade…) da tal ruína a que alguns chamam de igreja. A ruína parecia-se com uma, quero eu dizer.
Estou cansado, quero adormecer… Quero adormecer para sempre… Quero desaparecer, quero deixar de ver tudo turvo, quero não ver, quero não sentir, quero nunca mais apelar à minha Deusa…
A minha Deusa… Desejo-a tanto… Não fosse ela a minha Deusa… E há tanto tempo que apelo por ela… Alguns apelam por um Deus inexistente, até agora nunca o vi, nunca o senti, nunca se mostrou de maneira alguma… Mas a minha Deusa… É diferente, muito diferente… Já a senti tantas vezes… Já a vi perante a minha fronte tantas vezes… Vezes demais, era o que eu pensava de cada vez que ela me aparecia à frente… Mas agora, que quero tanto que ela me visite uma vez mais, ela ignora-me, e ri-se de mim por cada vez que invoco o seu nome nestes momentos de desespero, que me levam a uma Loucura ainda maior, que me fazem querer sair deste estúpido edifício podre, tal como eu…
A Loucura vence-me, sinto-me a cair, sinto-me a adormecer, sinto os olhos a fechar, será que finalmente a minha Deusa me ouviu e correu para os meus braços…? 

Acto Segundo

Olá… És muito bonita, não és? Sim, sem dúvida alguma de que és… Quem és tu, dizes-me? Quero saber, podes-me contar? Porque tens os olhos negros? Porque não me respondes? Não me deixes ansioso, diz-me quem és, por favor, ou fala comigo, já não falo com alguém há demasiado tempo, por favor, imploro-te, não me deixes, não me vires as costas, não, por favor, não, NÃO!!!
Olá… Eu já te vi antes, não já? Quem és tu? Gosto de ti, sabias? Não, não sei porquê, mas gosto… Do que mais gosto? Gosto do teu cabelo negro, por exemplo. É tão belo… Sabes, sempre pensei que fosses assim, sabias? Pois, eu também pensei que não soubesses. Estás aqui há muito tempo? Está bem… E eu? Sabes há quanto tempo estou aqui? A serio?! E estive sempre a dormir? Mais ou menos? Como assim? Chamem por quem? Não me recordo… Na verdade, não me lembro de nada… Lembro-me vagamente de ti… Mas não sei mais… Será por estar neste local? Também me lembro deste sítio, mas nunca o vi tão belo, tão puro…
Olá… Que aconteceu…? Estou sozinho… Acho que sempre estive só… Que é isto que eu sinto…? A quem disse olá? Aquele sou eu? Posso ir ajudá-lo? Ou ajudar-me, se sou eu…? Não? Porquê? E porque estou a falar comigo mesmo? Porque ouço tantas vozes dentro da minha cabeça? Porque está tudo escuro? Porque é que tudo isto está a acontecer outra vez? Eu estou morto? Não, não posso estar, se estivesse, não sentiria peso, não sentiria responsabilidade por nada, mas no entanto, sinto… Não sei bem pelo quê, mas isso também não interessa nada… Ou interessa? Quem sou eu? Acho que me esqueci da minha própria identidade… Não tem mal, pode ser que assim não seja eu, e que possa partir para outro lugar…
Que cheiro é este… Cheira-me a… flores? Não, não pode ser… Pensei que já estaria a salvo, eu senti-me a cair… Estou mais perto da realidade, é isso? Olá… És muito bonita, não és? Sim, tu, tu que… Mas que raio… Não me lembro de ter pensado isto, não me lembro sequer de ter desejado alguém assim… Que confuso… Talvez tenha de ser assim… Mas porquê? Poderei ser salvo? Estou consciente? Tenho consciência? E este cheiro…
Hmm… Sabe tão bem… Continua, por favor… Não, não quero abrir os olhos, quero continuar assim, de olhos fechados, no teu colo, a levar com as tuas carícias ternurentas, sentir o cheiro da tua pele… Acho que pela primeira vez, sinto que estou a falar a verdade… Talvez queira ficar aqui por mais tempo, só para poder sentir isto, é tão bom! Não, não me faças abrir os olhos, decididamente estou bem aqui, sinto algo a nascer dentro de mim…
Silêncio… Uma menina cantarola por aí algures, consigo ouvi-la a interromper o meu tão estimado silêncio… Ouço-a a aproximar-se, com a sua leve voz que levemente é trazida pelas correntes de ar que sopram na minha direcção… Levemente ao de leve levanto a cabeça e olho em redor, mas só ouço uma voz a cantarolar… Afinal não há menina… Será o meu arrependimento, que chegou para me atormentar? Mas não pode, a voz dela é tão bonita… Mas não há nenhuma ela, pensei que isso já estivesse esclarecido… E canta, e canta, e canta…
Que gosto é este que me assalta os lábios? Sim, quero, vem cá e dá-me mais, quero, vem, dá-me, seduz-me, tu, mulher na minha frente, quero, vem, dá-me, por favor… Quero mais, deixa-me provar os teus lábios uma vez mais, por favor, imploro-te… Não, não podes, não sabia, não podes levá-los de mim, eu não o permitirei, pára, por favor, os meus olhos libertam tudo o que me deste, vê como eu choro! Não os leves de mim, por favor! Se mos tirares de mim, eu enlouqueço… Sim, preciso muito deles… De todos eles… Não mos tires…
Mas tirou…

Acto Terceiro

O que aconteceu…? Dói-me a cabeça… Tantas recordações de repente… Tenho de ir buscá-la… A ela principalmente… Finalmente… Percebi… Tenho só de sair… Daqui… Porque não… Consigo levantar-me…? Que coisa é esta que me aprisiona… A minha visão continua turva, mas continuo a cheirar o aroma das flores… Ainda estou no santuário… Claro, quem é que me levaria daqui… Idiota, pensar que tal coisa poderia acontecer… Mas agora tenho de sair… Tenho de sair daqui…
Eu quero… Eu quero outra coisa, pela primeira vez em muito tempo quero outra coisa diferente, bem diferente… Quero correr para os braços dela, quero sentir o seu toque, o cheiro da sua pele, quero ver o brilho do seu olhar, mesmo que a minha pouca visão não mo permita… Quero poder fechar os olhos e saber que estou seguro, finalmente sei o que quero… Sinto-me feliz com este pensamento, sinto-me leve… Quero correr para os braços dela, daquela que eu amo, indiscutivelmente, sempre amei, só estava demasiado cego para o perceber… Ela ajudara-me a superar tudo, porque motivo me deixei ir tão fundo, porquê? Porque pensei que tudo tinha de acabar porque eu queria? Sou tão tolo… Tanta coisa cruel que me passou pela cabeça, e para quê? Para nada… Agora quero sair daqui, sei que ela vai lá estar para me receber, mesmo do outro lado da porta, basta atravessá-la, mesmo que me vá a arrastar, mesmo que tenha este ar lastimável, mesmo que pareça mais morto que vivo, sei que ela vai pegar em mim e levar-me para casa… Para a minha verdadeira casa… Eu sei que sim…
Arrasto-me, por uma vez na vida desejo que a madeira deste sítio não esteja tão má, desfaz-se perante o toque dos meus dedos… Olho para as flores, e penso em como seria bonito levar uma para ela… Amarela, tal como a Luz que o Sol erradia sobre todos os seres vivos e não vivos, volto então atrás para colher tão belo ser da Natureza. Não consigo levantar-me, mas porquê? A porta está tão perto, e ao mesmo tempo tão longe… Ela está do outro lado, eu sinto que sim, é só atravessar aquela porta, que fica mesmo na minha frente, só tenho que me arrastar… Num último esforço de desespero, levanto-me, mal aguento com este corpo inerte, quanto mais com o peso da minha alma nele mesmo. E acabo por cair outra vez… Estou mais perto, apesar de tudo, falta um bocado, nada de mais, eu consigo, vamos lá… Desespero a esta espera enorme a que estou submetido, e finalmente a alcanço, a porta de um Mundo novo, a porta da Mudança, a porta do Recomeço, basta esticar a mão para a maçaneta dourada… Do outro lado ela espera por mim… Algo atravessa a minha face de um lado ao outro, e inconscientemente, uma gargalhada irónica é produzida pela minha Loucura constante, mas que não parece vir de mim… Abro a porta, e finalmente a vejo… Eu sabia que estarias aqui para mim… Eu sabia… Vem, chega-te aqui, abraça-me, só te peço isso, e leva-me contigo…
Mas… Não, não és ela! Sai, vai-te, SAI! Não agora, porquê?! Tantas vezes chamei por ti, porque só vieste quando finalmente me tinha encontrado? Pára, por favor, deixa-me viver com esta Loucura, é minha, não me queiras levar isso também, já me levaste quase tudo! E ela está à minha espera, eu sei… O que dizes…? Não… Não acredito em ti… Não acredito, não podes, ela está à minha espera, não, pára, larga-me, tu de vestes negras que seduzes as pobres e moribundas almas como eu, por favor, não faças isto…
Mas ela fez… E acabo aqui, com a porta entreaberta para quem quiser poder observar a minha desgraça, o meu corpo despromovido de qualquer Loucura, despromovido também de qualquer alma, qualquer sinal de vida… A flor amarela jaz sobre o meu peito, mas já não é amarela… Está morta, tal como eu… Fica de aviso para quem mais ousar desafiar a minha Deusa… Ó se Deusa és… Levaste-me para bem longe daqui… Mas ao menos… E uma vez mais deixo soltar uma gargalhada irónica dos meus lábios, e olho para trás, e vejo um corpo jazido no chão, coberto de flores amarelas, e contínuo em frente, de mão dada com ela, com a minha Deusa, que afinal, não passava daquela que eu mais desejava… A Loucura, essa, deixei-a para a mulher das vestes negras que me levou (e que afinal, não passava disso mesmo, a mulher das vestes negras), finalmente, para a cura do meu sofrimento e um grande obrigado por tudo…

Fim